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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

RECORDAÇÕES DA MINHA RUA

(PEQUENO FRAGMENTO DA MINHA AUTOBIOGRAFIA)

(…)

… A vida continuava num frémito de carências e paixões. Lá estava o “azeiteiro”, com um burro esquálido e morto de cansaço, puxando a image carroça vergada ao peso de vasilhame com azeite e azeitonas, zurrapa de vinho ou “água-pé”, algumas broas de saúde negra, bafientas, “do dia anterior” – eram certamente sobras de quem não pôde comprar por fiado não ter; também transportava toda a espécie de géneros alimentícios. “Não têm que ir à loja, cá o Quim azeiteiro traz de tudo para vossemecês”. Então Dª Julieta, as broas são mesmo de ontem; o que fiz, foi demais e, olhe, sobraram-me estas… pronto, compra-me um litro de azeite e ofereço-lhe uma; não se preocupe, vai pró livro; depois paga, que eu sei bem quem é gente séria. – Insistia o andrajoso homem, moreno, de tez curtida pelo sol; e lá pegava ele na corneta e tocava até os ouvidos cansar; e gritava também:

– Azeiteiro, olha o azeiteiro… mulheres, então não querem o Quim azeiteiro?

E era a leiteira das quatro, a padeira, a carvoeira, a peixeira, “olha a sardinha biiiiba, que bibinhas, queridas!”; o jornaleiro “Olha... olha, diz aqui que o Toninho vai mandar mais tropas pró Ultramar; leiam, leiam seus ignorantes, isto está a ficar mau!”; era o polícia de giro com os braços escondidos nas costas, naquele andar vagaroso e enviesado , embrulhado numa farda cinzenta e puída; boné “tipo disco” enorme, maior que a sua cabeça – por muito prenhe de ideias lá metidas não chegava para o encher; e tinha aquele ar de importante – sim, porque naquele tempo os polícias eram importantes!

A rua era um torvelinho de acontecimentos durante todo o dia e noite: os rapazes jogavam à bola e ao pião; “empresta-me a faniqueira, emprestas? A minha já pariu”; as raparigas corriam, de bonequinhas na mão, a jogar às escondidas. Por vezes as coisas, ou entre eles ou elas, azedavam, e era ver as mães a tomarem partido e, entre gritos histéricos e mal cuidados, atirarem-se aos cabelos umas das outras para fazerem valer a sua razão. À noite chegavam os pais, derreados por mais uma longa jornada de trabalho, e a primeira coisa que ouviam eram as histórias do dia. Lá iam eles também tirar satisfações aos vizinhos; aqui já era mais sério pois, por entre socos e pontapés, uma ou outra vez, pequenas navalhas de “ponto e mola” eram encostadas nos rostos ou costelas dos oponentes.

– Ó da guarda, ó da guarda, ai que ele mata o meu homem! Ó desgraçado, eu vou buscar uma tesoura e arranco-te os olhos.

– Não te rales, mulher, que ele já tem os cornos bem amassados. – Respondia Zé Pedras, o rei dos conflitos da rua… e fazia questão de o afirmar, não porque fosse muito dotado atleticamente, mas o tempo que tinha estado arrecadado no Aljube, mais as cicatrizes afundadas no pescoço, davam-lhe uma “orgulhosa” fama de mau, o grande facínora da zona. Também ninguém podia esquecer que era – fazia alarde disso em todas as conversas, como se fosse verdade – o “papa gajas” de toda a freguesia de Ramalde, a terra dos “cornos grandes”! O apelido que tinha devia-se ao facto de, sempre que um comboio atravessava a rua, se divertir a partir os vidros das janelas, arremessando tudo quanto era pedra. Passava mais tempo na “sombra” que a trabalhar de pedreiro. Enquanto prolongava as suas “férias”, repartidas diversas vezes ao ano, a mulher, a Gina Mama Tudo, entretinha-se no “aquecimento” de velhos reformados e viúvos, fazendo-os esquecer as derrotas nos jogos da “sueca” e, principalmente, as mágoas de toda uma vida magoada! E quando falo de “aquecimento, sei do que falo: na imageverdade a Gina mais parecia uma  botija de gás, deformada, com monstruosos pés suportando duas enormes – e desejadas (!?) – protuberâncias; no corpo, uns braços fortes e peludos, em simetria desafiadora, escondiam as mãos atrás da “bilha”; não se lhe adivinhava a cabeça, ou antes, talvez que a torneira de gás desempenhasse a tarefa de pensar…; apenas dois enormes e bonitos olhos sugeriam que “aquilo” era gente! Chegavam a polícia e a ambulância; partiam o amassador de cornos e o de cornos amassados. No dia seguinte já tudo havia sido esquecido, restavam apenas uns arranhões, uns olhos pisados e alguns pensos; nada que evitasse o convite para uma bacalhoada “no próximo Domingo” para fazerem as pazes. Mas, antes, todos tinham que ir confessar os seus pecados. Era um corrupio na capela, com as mulheres de lenço preto e rendado na cabeça e os homens também vestidos para o escuro, aguardando a vez de expiar os seus pecados – leia-se as navalhadas e os “cornos” partidos dos rivais!

– Então, perdoou-te? – Perguntava-lhe a mulher, Gina Mama Tudo.

– Perdoou-me… vou ter que rezar um terço completo quando chegar a casa, senão não posso “tomar o Senhor” na missa de Domingo, e a ti?

– Também tenho de rezar um terço. – Respondia ela com um ar algo preocupado: não tinha confessado ao padre as fraquezas divididas com o seu compadre e cunhado… “isso não tem importância, afinal é da família!” Depois da missa iam até à rotunda da Boavista, ou ao Carvalhido, engraxar os sapatos. Havia dezenas de engraxadores espalhados pelo jardim, sentados nas suas caixas com o suporte do pé na frente, um ou dois frascos de tinta e algumas latas de pomada ao redor, e perguntavam:

– Freguês, quer com lustro ou meio lustro? Pomada branca, preta ou castanha? – Depois, com um pano de flanela, ou de seda, consoante o polimento escolhido pelo cliente, inclinavam-se para a frente e, como os ciclistas em cima do selim “sprintando” parimagea a meta, em furiosos movimentos oblíquos e ao som de pneus gastos em derrapagem, finalizavam a sua obra. “Pronto, caro amigo, ora até se pode ver a sua cara nos sapatos!” – “Quanto é?” “Cinco tostões, nem para a graxa dão; um ou dois tostões de “gorja” até não caíam nada mal, mas vossemecê é que sabe!” De regresso a casa ainda compravam um maço de cigarros, Definitivos ou Provisórios, sem filtro, e passavam pela taberna para um café “com cheirinho” de bagaço.

– Então, Gina, o “tacho” já está pronto? Eu hoje quero o conduto só no fim; enquanto os vizinhos não chegam, põe-me aqui um prato de sopa e liga aí a rádio para a “Voz dos Ridículos” (Clássico programa de humor que, durante trinta anos, ia para o ar às 13,00 horas, aos Domingos, e que começava sempre com uma anedota diferente).

– O que é um pedreiro? – Perguntava o locutor.

– É aquele que, volta e meia, dá um tiro no trabalho. – Respondia outro.

O homem quase se engasgava com a sopa de nabos.

– Ai, o filho da puta… eu sou pedreiro, mourejo até cair para o lado e… ah, ah, ah! Tá boa, muito boa! –

Enfim, o Zé Pedras afinal tinha percebido a piada! Finalmente chegavam os vizinhos para enterrarem o machado de guerra e entreterem-se logo de seguida, depois de bem comidos e bebidos, numa renhida partida de malha ao meco, enquanto as mulheres arrumavam a casa.

O tempo ia passando, por entre “jogatanas” de bola no largo do fontanário, – “olha a bófia, olha a bófia” – e todos fugíamos do polícia de giro. Era proibido jogar a bola na rua e, se os miúdos estivessem descalços a multa dobrava; assim, quem tivesse menos jeito, ficava de sentinela; também eram proibidos os ajuntamentos – mais de dois já assim eram considerados.
– Abram… de frosca, de frosca… toca a andar. – Gritava o polícia.
Mais tarde, numa grande parte do referido largo, foi construído o viaduto de Sidónio Pais que, ainda hoje, liga as ruas de Pedro Hispano, 5 de Outubro e o Nó de Francos.

(…)